Blade Runner, apesar de início não ter sido um sucesso de público, acabou ao longo da década de 80 e nas décadas seguintes, virando um cult, com uma mistura intigrante mesclando um estilo policial noir com ficção-científica em uma Los Angeles de 2019. De início somos avisados da principal questão do filme: “No inicio do século XXI a Tyrel Corporation criou os robôs da série Nexus virtualmente idênticos aos seres humanos. Eram chamados de replicantes. Os replicantes Nexus 6 eram mais ágeis e fortes e no mínimo tão inteligentes quanto os Engenheiros genéticos que os criaram. Eles eram usados fora da Terra como escravos em tarefas perigosas da colonização planetária. Após motim sangrento de um grupo de Nexus 6, os replicantes foram declarados ilegais sob pena de morte. Policiais especiais, os blade runners, tinham ordens de atirar para matar qualquer replicante. Isto não era chamado execução, mas sim ‘aposentadoria’.”
A seguir, aparece a data (e local) da trama de Blade Runner – Los Angeles, novembro de 2019. Então passamos a conhecer o protagonista do filme, o blade runner Rick Deckard (Harrison Ford), considerado o melhor caçador de replicantes, destacado para “aposentar” um grupo de replicantes Nexus 6 que fugiram do seu local de trabalho. Sob o comando do replicante Roy Batty (Rudger Hauer), os Nexus 6 buscam prolongar seu tempo de vida. Apesar de serem tão ágeis, fortes e inteligentes quanto qualquer ser humano, os replicantes têm apenas quatro anos de vida.
Ao lado desta trama principal, temos uma história paralela: a relação amorosa de Deckard com a replicante Rachael (Sean Young), que trabalhava como secretária de Tyrel, dono da poderosa corporação industrial produtora dos Nexus 6 (Tyrel diz: “Nossa meta é o comércio. Nosso lema é ‘mais humanos que os humanos’”).
Blade Runner é um filme de buscas, todos eles querem algo: Deckard busca encontrar os replicantes; mas percebemos também que ele busca a si próprio. Rachael, está imersa na busca de sua identidade inexistente. E os replicantes Nexus 6 buscam desesperadamente ter mais tempo de vida.
Enfim, Blade Runner é uma pequena odisséia de homens e mulheres, humanos e pós-humanos, em busca da sua identidade.
Temos no filme a questão filosófica sobre o problema da identidade do homem, debilitada pelo compromisso do dia-a-dia e a obediência as estruturas burocrático-corporativas do mundo. É o caso de Deckard, individuo solitário, obrigado pelos dispositivos policiais e corporativos a “aposentar” os replicantes (apesar de ter-se aposentado, no sentido usual do termo, Deckard é convocado a utilizar sua habilidade de investigador policial, ou melhor de blade runner, para caçar os Nexus 6). O passado de Deckard não é revelado, mas dá a entender que ele quer esconder algo, pois percebe-se que o convencimento de Deckard para participar dessa caçada aos andróides é feita através de chantagem feito pelo chefe de polícia de LA. Como diz ele: “Conheço o jogo meu amigo. Se não topar, está acabado.”)
O cenário de Los Angeles em 2019 é confuso, opressivo, onde temos uma constante chuva.
Diz, logo no inicio do filme, a mensagem publicitária: “Uma nova vida espera por você nas colônias interplanetárias. A chance de começar de novo numa terra dourada de oportunidades e aventuras! Vamos para as colônias!”. E a mensagem do grupo Shimago-Dominguez Corporation conclui dizendo: “Ajudando a América a entrar no Novo Mundo”.
Pelo que se percebe, a crise de identidade não é apenas de homens e mulheres, de humanos e pós-humanos, mas a crise de identidade atinge inclusive o próprio Estado-nação, ou seja, os EUA, onde é perceptível a presença marcante (e dirigente) de estrangeiros (principalmente de japoneses).
Em Blade Runner, logo no inicio, são destacadas as luzes de néon de propagandas das corporações industriais, emoldurando um cenário opressivo quanto a chuva persistente e as vias urbanas cheias de transeuntes,com bairros decadentes. Na verdade, a Los Angeles de 2019 é uma imensa Chinatown, de homens e mulheres incapazes de migrar para o paraíso distante, outras terras privilégio territorial da classe dos capitalistas e congêneres.
A identidade humana também é questionada quando ocorre o desenvolvimento da engenharia genética que cria novos e perfeitos seres-humanos, os replicantes, imagens perfeitas do homem , como tratar esses supostos seres, criados para servirem de escravos se são tão parecidos como nós, como se relacionar com eles que duram apenas 4 anos.
Os avanços da técnica tendem a desencantar, mas, de forma contraditória, afirmam a identidade do homem, como iremos verificar no decorrer de Blade Runner. Podemos dizer que é através da experiência de vida dos replicantes que tende a ocorrer a apreensão da identidade perdida, ou em processo de perda, do homem. Na verdade, o homem se encontra através de seus objetos vivos (uma contradição em termos). É no decorrer desta busca desesperada dos Nexus 6 que conseguimos apreender o significado (e valor) da experiência humana.
Ora, nós temos o que eles buscam: tempo de vida e memória. Esta é base da hominidade em Blade Runner.
Em Blade Runner, os replicantes, embora não sejam do gênero humano, mas sim objetos técnicos complexos, produtos do trabalho humano, da engenharia genética e de seus avanços fantásticos, reivindicam um atributo elementar da hominidade: tempo de vida. Terem apenas quatro anos de vida, como os Nexus 6, é muito pouco para inteligências ágeis e complexas que sonham alcançar a almejada hominidade.
A busca por mais tempo torna-se uma “estranha obsessão”. Tyrel reconhece tal dilema dos replicantes quando diz a Deckard: “...eles são emocionalmente inexperientes, têm poucos anos para coletar experiências que nós achamos corriqueiras. Fornecendo a eles um passado criamos um amortecedor para sua emoção e os controlamos melhor.”
Na verdade, o objetivo de Tyrell é controlar sua criação, os Nexus 6, evitando que tal “estranha obsessão” signifique motins (como ocorreu com os seis replicantes “caçados” por Deckard). A manipulação da memória é capaz de amortecer tal sofrimento psíquico e controlar suas disposições insurgentes. Ao fornecer um passado para os replicantes, a Tyrell Corporation manipula sua memória e os controla melhor. É interessante a sugestão do filme Blade Runner em considerar a manipulação da memória através da atribuição de um passado imaginário, prática intensiva dos dispositivos midiáticos do sistema do capital, como uma forma de controle social.
O diálogo entre Roy e seu cridor Tyrell é uma das cenas mais significativas de Blade Runner. Expressa o lancinante paradoxo de Blade Runner (diz Tyrel: “Você foi feito o melhor possível. Mas não pode durar”). Na verdade, os replicantes atingiram, tal como Hal 9000 em 2001-Uma Odisséia no Espaço, o limiar da hominidade. E tal como Hal 9000, se rebelam e são “desligados” (ou “aposentados” – no jargão da Tyrel Corporation).
O drama dos replicantes é o drama humano, o ser humano ao longo de sua história sempre buscou a imortalidade, a busca da juventude eterna.
Uma parte interessante do filme é como os replicantes são descobertos, através do uso de um instrumento capaz de ler a íris dos olhos. Um detalhe: a presença do olhar em Blade Runner é marcante, não apenas pelo fato dos replicantes serem identificados através da análise de sua íris, mas pela cena de abertura do filme, que mostra um close-up magistral dos olhos de Deckard contemplando o cenário sombrio de Los Angeles. Em sua íris se reflete a distopia da América. Na verdade, como se diz, a imagem dos olhos é expressão da “janela da alma”.
Através de um teste de perguntas e respostas e do aparelho de leitura da íris dos olhos, utilizada nas sessões de interrogatórios pelos policiais blade runner, se busca verificar não apenas relatos de memória, mas a coerência das respostas dadas (o que sugere uma atitude-padrão no mundo social de Blade Runner). “É um teste criado para provocar uma resposta emocional”, como observa o blade runner. Estamos diante de um instrumento de aferição da socialidade e da consciência coletiva, de valores e atitudes sociais politicamente corretas.
Ou seja, os replicantes como não possuem memória, através das reações de dilatação da pupila, eles são descobertos. Um caso interessante, são os testes feitos para introduzir memória nos replicantes, como no caso da experiência de memória de Rachel, é um implante da experiência de vida da sobrinha de Tyrell (Rachael chega a dizer, imersa em crise de identidade impossível: “Não sei se sou eu ou a sobrinha de Tyrell”).
Deste modo, Rachael está diante de certo estranhamento, pois ela não aceita o fato de ser uma replicante, de não ter lembranças e não ter tempo de vida suficiente para tê-las, seu desejo a princípio é fugir, o que é desencorajada por Deckard.
Em Blade Runner existe uma outra situação paradoxal: o caçador, aos poucos, se interverte em caça. Ao longo da narrativa, Deckard, que persegue os replicantes, torna-se, na cena final, perseguido pelo último dos Nexus 6, Roy Batty, que dá-lhe uma “lição de vida” ao poupá-lo da morte e dizendo apenas: “Uma experiência e tanto viver com medo, não? Ser escravo é assim.”
Finalizando Roy observa: “Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva.” O replicante Nexus 6 sente a angústia do tempo, destacando a unicidade (e fluidez) da sua experiência singular de vida. Conclui, dizendo: “É hora de morrer”.
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